sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Fado da ausência

"Quando ela não estava, o apartamento parecia mais arrumado, chato como uma noite de Junho que sabia a Fevereiro, janelas tremendo no caixilho, os chinelos dela ainda espalhados na sala.

Quando ela não estava, ele dava-se conta de como tudo permanecia por tocar, incluindo o patético chapéu verde, que jamais usara na rua, mas que servira de adereço para o disparate matinal do riso - música a tocar bem alto, ele cantando e dançando de vassoura nas mãos.

Quando ela não estava, certa noite, ele ouviu outra vez o carpir das ciganas lamentado uma morte, no pátio do Hospital S. José, uivos negros como rasgões no tecido da noite, ais e ais sem fim, a repetição da agonia.

Quando ela não estava, ele tinha mais medo, deitava-se mais cedo, comia coisas de adulto.

Quando ela deixou de estar, continuaram a tocar as mesmas músicas, viagens melódicas no tempo, um artifício da mente para revisitar a pulsação desses dias, o fôlego nas coxas e a coluna arqueada. Mas ela não estava. E nenhuma frase cantada, nenhum creme hidratante esquecido na bancada da casa de banho, nenhuma peça de roupa perdida ou qualquer outro lugar-comum romantizado, podiam contrariar a evidência que mais enchia aquela casa: ela deixou de estar.

Quando ela estava, havia mais coisas para fazer, mesmo que decidissem não fazer nada.

Quando ela ainda estava, ele ficava mais tempo em casa. Na noite das ciganas chorando prenúncios de cataclismo, foi ela que abraçou a casa como um escudo de nave espacial. E, no entanto, havia já muitos dias que ela tinha deixado de estar. "


Escritor
 


Tenho saudades tuas.


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