quinta-feira, 9 de julho de 2015

Livro dos loucos

Tenho medo do passado, sabes? Medo de que o que foi não volte a ser.
E não volta. O pior é que não volta.

As recordações são a prova de que há algo de diabólico e de milagroso no mundo: têm tanto de dor como de prazer.
Como se apaga uma lembrança eterna? Como se apaga a tarde em que me disseste sim pela primeira vez? Pior: como se apaga a tarde em que me disseste não pela primeira vez?
Há tanto para sofrer e só uma vida para viver.
A senhora da loja da esquina sofre tanto, e sorri. Até quando só vai ser aceite sofrer tanto e sorrir?
A humanidade tem medo da dor, e por isso sofre.
Corre em mim um vento estranho, um grito que me enche os ossos. Onde estou quando não estás?
A morte serve para valorizar a vida - e para acabar com ela também. A minha ainda não chegou mas tu já foste: eis o paradoxo perfeito.
Como continuar?
Algures há-de estar alguém com os teus braços em si, algures há-de estar alguém com a vida completa em si. Tenho inveja de quem te ama, e ao mesmo tempo uma admiração incontrolável: quem te faz feliz é o meu melhor amigo, mesmo que seja a pessoa que me tira de ti.
Amo-te para além de mim, é isso.
Um dia voltarei a ver na imagem do sol não apenas o que vejo hoje: a tua imagem debaixo dele. És a imagem que integra todas as outras, uma espécie de supra-imagem: de única imagem.
Existe o que te toca ou não existe nada.
A senhora da loja da esquina quer que sorria de volta; esforço-me mas não consigo: estamos os dois fechados numa saudade que só ela disfarça. Quando deixar de olhar contigo dentro olharei para o que me rodeia. Para já não; para já quero prosseguir à tua procura mesmo que saiba que não queres que te encontre.
Amar é também continuar a procurar o que não quer ser encontrado.
Procuro-te para me encontrar. Espero que me compreendas.
A noite caiu, o quarto vazio, um cão ladra ou uiva e parece saber a solidão. Há um lado incompreensível em tudo o que não se explica - e é ironicamente esse o único lado que vale a pena experimentar.
Acontece-me, por vezes, esquecer-me que existes. E são os dois ou três segundos mais insuportáveis do meu dia.



Pedro Chagas Freitas

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